Com o semestre suspenso em praticamente todas as instituições federais de ensino durante a pandemia do novo Coronavírus, docentes e estudantes vivem na incerteza sobre como dar seguimento aos estudos. Ainda em março, o Ministério da Educação publicou uma portaria que permite a substituição das disciplinas presenciais por aulas à distância, com o objetivo, segundo a pasta, de manter a rotina de estudos dos alunos. A mudança é válida para universidades e institutos federais e Cefets, além de universidades e faculdades privadas.

“Educação sem planejamento está fadada ao fracasso”

Para discutir o assunto, o programa Voz Docente dessa semana entrevistou o professor Lalo Watanabe Minto, do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp. Para ele, o que se vê na maioria dos casos pode ser resumido em uma palavra: improviso.

Além da pressão que vem sendo imposta pelas redes privadas para a liberação do ensino remoto, Minto ressalta que determinação foi feita de cima para baixo, sem diálogo mínimo com instituições e o público envolvido. “Ninguém foi consultado: o MEC simplesmente determinou a possibilidade da substituição, e há uma série de dificuldades decorrentes. Esse debate não se reduz a um problema de adequação ou não ao uso de tecnologias”, comenta o doutor em Educação.

Ele aponta que o MEC não obedece as próprias regras vigentes sobre o tema (a portaria não tem orientações para a substituição, como se o próprio ministério estivesse sugerindo que fosse feito de maneira improvisada, apenas trocando o meio para garantir as formalidades do semestre letivo).

“Outra dificuldade é que situações de crise exigem estratégias à altura, e substituição é uma forma precária de fazer com que as cosias aconteçam, como se tivessem que seguir seu curso normal – e tudo que não há no momento é uma situação de normalidade”, pondera o docente, criticando ainda a necessidade de adequação em curto prazo das atividades. “Costumo dizer que educação sem planejamento está fadada ao fracasso. Assim, não é possível de uma hora pra outra fazer qualquer tipo de transposição”, alerta o professor, que vai além: “Muitos dizem que a resistência a esta forma seria um tipo de conservadorismo da escola, mas acho que é exatamente o contrario: conservador é querer fazer tudo para querer manter as coisas no seu curso normal em uma situação de anormalidade.”

O esforço para uma universidade inclusiva não pode se esvair

O ANDES-SN repudiou a portaria do MEC, destacando a falta de atenção do Ministério à desigualdade social e de acesso a tecnologias necessárias para o uso efetivo do EAD. O professor Lalo Minto endossa essa postura: “Acho que o ANDES-SN está correto no seu posicionamento e nos argumentos, por exemplo, da desigualdade. Eu indicaria ainda que há outros problemas, como a sobrecarga para docentes, custo que isso incorre para as pessoas – já que é preciso financiar equipamentos e serviços (internet boa, equipamentos, uma serie de recursos que acaba custeado pelos envolvidos).”

Para Minto, todo o debate sobre condições de trabalho e o oferecimento das mesmas pelas instituições acaba se perdendo, como se agora os trabalhadores fossem obrigados a “empreender”. “O fato é que a grande maioria das instituições está desequipada para isso. Temos visto pedidos de doações, especialmente de equipamentos usados em bom estado. É um pouco uma contradição que se impõe: o discurso de não podemos parar porque nosso trabalho é imprescindível, mas na prática acaba sendo desmontado pelos próprios encaminhamentos tomados. Tem vários levantamentos indicando que boa parte do público das instituições de ensino não tem acesso a computadores, a internet, etc. Pacotes de dados são caros no Brasil, e muita gente depende de wifi gratuito. Existe uma série de dificuldades que a situação atual só amplia”, argumenta, lembrando que o tema da inclusão na universidade pública também sofre com a situação: tanto esforço para garantir a permanência desses novos públicos que vem acessando a universidade também não pode se esvair neste momento.
Minto defende a suspensão e até o cancelamento do semestre como medidas mais adequadas neste momento, pois a atitude permitiria tempo para que docentes e alunos pudessem se preparar para planejar e discutir as ações para retomada – como recursos físicos, de pessoal e de tecnologia. “Insisto na ideia de que não se trata de usar ou não a tecnologia disponível – isso a gente já faz há muito tempo. Não tem recusa à tecnologia como absurdamente muitos têm criticado.”

Um futuro incerto

Sobre como será a escola após a pandemia, o especialista é cético: talvez estejamos vendo uma fissura se abrir com maior intensidade no campo da educação publica, que é a adoção generalizada do EAD junto com o ensino presencial. “Também, como as tecnologias não são neutras, por trás desse processo, há uma concepção que entende que o professor não deve ser o sujeito central do processo educativo. Portanto, podendo ser substituído por recursos, tecnologias e plataformas de aprendizagem, mais precisos, mais baratos e que permitem maior controle. Se, para o setor privado, isso é uma forma clara de reduzir custos e controlar mais o ensino, para o setor público também pode vir a ser, afinal estamos vivendo um contexto de enxugamento em áreas sociais, demonização do servidor público. A gente sabe que as prioridades são outras, em especial aquelas que dizem da rentabilidade do capital no setor financeiro.” Por trás disso, há toda uma indústria que se formou no campo educacional que vê uma grande oportunidade de faturar mais e tudo isso pode significar que o ensino passe a ficar mais dependente ainda do uso de certas tecnologias privadas, defende o docente. Numa nota positiva, ele encerra ponderando que é possível que a escola seja desafiada a pensar que outros papéis pode vir a ter numa outra forma de organização social. Para ouvir a íntegra da entrevista, clique aqui.

Trabalho remoto não substitui trabalho presencial

Eblin Farage, diretora do ANDES-SN, lembra em artigo publicado no portal Esquerda Online que o trabalho remoto não substitui plenamente o trabalho presencial. “Não temos condições de responder às mesmas demandas e assegurar o mesmo desempenho. Quando preparamos aulas na ‘normalidade’ da vida cotidiana, o fazemos sem criança para olhar, sem casa para arrumar, sem comida para fazer, sem idoso para cuidar ou pelo menos com esses elementos já plenamente inseridos em nossa organização cotidiana. Por isso, não acredito que o isolamento social imposto de maneira imediata possa ser comparado com o trabalho regular sem isolamento, daí não ser possível exigir o mesmo ‘desempenho’.”

Para a professora, há muitas especificidades e desigualdades, e não se pode nem deve pensar a educação só para alguns. “O EAD, nesse contexto, como substituição ao ensino presencial, é uma forma de elitizar a educação e aprofundar a desigualdade, o fosso entre ricos e pobres. Em um país tão desigual, direitos se tornam privilégios. A educação presencial, nas instituições públicas de ensino, garante a possibilidade de amenizar essa desigualdade. Assim, as condições desiguais entre nosso(a)s aluno(a)s, por si só, justificam a impossibilidade do EaD ser assumido como substituto ao presencial. Durante a pandemia, o ensino a distância aprofunda a desigualdade e inviabiliza qualquer possibilidade de isonomia no processo de ensino-aprendizagem.”

Via: ANDES-UFRGS.