A Constituição da República Federativa de 1988 reconheceu aos indígenas, em seu artigo 231 e parágrafos, o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam. Essa mesma Constituição foi mais além, e definiu o que é terra tradicionalmente ocupada e quem são seus titulares, demonstrando claramente quem detém a titularidade da propriedade e a quem pertence a titularidade da posse permanente.

O legislador constituinte originário quis garantir a proteção constitucional dos direitos dos povos indígenas em face dos constantes ataques e esbulhos que suas terras sofreram e sofrem ao longo de séculos.

Esta mudança na Constituição de 1.988 reafirma os direitos indígenas como direitos fundamentais, reconhecendo as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas como direitos originários, consagrando o indigenato, reconhecendo que as comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos seus direitos e interesses.

No entanto, o que vemos é uma lacuna imensa de violações e desrespeito a esses direitos. Um vasto conjunto de usurpações que ferem a todo momento o que assegura a Constituição. Para melhor exemplificação citamos a Tese do Marco Temporal, uma assombrosa e violenta forma de pensar que, embora tenha sido retirada de pauta (prevista para o dia 28/10/2020), ainda segue exigindo máxima atenção.

Vale ressaltar que se, atualmente, já vem sendo difícil por inúmeras razões realizar a demarcação de terras indígenas no Brasil, o advento do Marco Temporal vai significar a dificuldade no processo demarcatório, principalmente para os povos isolados.

No último dia 5 de março, foi divulgado um importante relatório de autoria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos(CIDH) da Organização dos Estados Americanos(OEA), sobre a situação dos direitos humanos no Brasil.

Dentre vários temas abordados, destacamos o que se refere a Tese do Marco Temporal, como citamos acima, e a Consulta Prévia, imposta ao governo no caso de medidas ou projetos que possam afetar os territórios e os direitos dos povos tradicionais.

É importante destacar o que consta no relatório sobre o chamado Marco Temporal. “Trata-se de uma tese que pretende restringir o alcance do artigo 231 da Constituição Federal, esse artigo garante os direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas”.

Basicamente essa tese nega os direitos de vários povos que tiveram suas terras usurpadas, griladas e consequentemente expulsos do seu bem viver e não estavam na posse dos territórios quando da promulgação da Constituição Federal de 1.988.

O relatório destaca também que a Tese do Marco Temporal desconsidera totalmente as constantes e incontáveis violências sofridas pelos indígenas e principalmente o que se refere a expulsão dos territórios ocupados tradicionalmente. Nesse sentido a comissão considera como contrária às normas e padrões internacionais e interamericanos de direitos humanos.

Os direitos dos povos foram reconhecidos e garantidos em primeiro lugar como o direito de existir como povo, de manter sua cultura e organização social. Em segundo lugar, como direito ao território para que possam desenvolver a cultura e a organização social.

Neste sentido, os dois grandes direitos são o de ser e o de estar em seu lugar. Daí decorrem todos os outros, material ou imaterialmente considerados. Assim, por dedução óbvia, uma autodeterminação como escolha de seu futuro.

Essas garantias resultam na obrigatoriedade de consulta prévia sobre qualquer medida, ato ou ação da sociedade hegemônica possa interferir no ser social ou sua territorialidade. Isso está expresso na Convenção n.169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), a convenção determina ainda que estes procedimentos estejam de acordo com as instituições representativas de cada povo.

Essa Convenção, em seu artigo 15, estabelece que diante de projetos que impactem as terras de povos tradicionais, os governos devem consultar os povos que seriam afetados para “determinar que seus interesses seriam prejudicados e em que medida antes de executar ou autorizar qualquer programa de exploração desses recursos existentes em suas terras”.

Ainda sobre o relatório da CIDH, a comissão destaca a atuação e parabeniza os protocolos de consulta elaborados pelos diversos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais e recomenda que sejam oficializados como forma de garantia dos direitos fundamentais dos povos originários e tradicionais.

Por Kunã Yporã – indígena Tremembé, educadora popular, articuladora de povos originários e integrante da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas

Artigo extraído do site Balaiada

Via: CSP-Conlutas