No Congo, organizações e entidades da sociedade civil têm se mobilizado contra a realização de testes de vacinas na população do país, para combater a pandemia do novo coronavírus.
As entidades têm denunciado a possibilidade levantada pela indústria farmacêutica, afirmando que os congoleses não são cobaias ou ratos de laboratório dos países que, historicamente, exploram e matam o continente e a população africana.
Algumas celebridades se posicionaram contrariamente, como o jogador franco-senegalês Demba Ba e o astro do futebol Didier Drogba.
Demba Ba afirmou que a África não é um laboratório de testes, e foi taxativo: “Bem-vindos ao Ocidente, onde um branco se crê tão superior que o racismo e a debilidade se tornam banais. É hora de nos levantarmos!”.

Em entrevista concedida à CSP-Conlutas, o ativista congolês da Sociedade Civil Congolesa na África do Sul, Yves Sa Ngol, falou a respeito de como isso foi recebido pela população e sobre a história de massacres e exploração dos povos africanos, em especial o do Congo, para o benefício de países imperialistas.
Yves conta que seu país de origem já serviu de playground para muitos projetos de países imperialistas, colonialistas e racistas. “No final do século XIX, quando a humanidade viu na indústria automotiva os veículos passarem da roda de ferro para a de pneus de borracha, os congoleses já eram usados e forçados, pelo Rei belga Leopoldo, a produzirem uma enorme quantidade de suprimento para dar conta de sustentar o crescimento da indústria automotiva na Europa. Neste processo, cerca de 10 milhões de congoleses perderam suas vidas. Esse crime, essa atrocidade, nunca foi conhecida como um crime contra a humanidade, mesmo com todas as provas sobre esse período. O Rei Leopoldo sempre foi celebrado como um herói na Bélgica, quando na verdade ele é tão criminoso quanto Hitler”, resgata o ativista.

“Hitler matou cerca de 6 milhões de judeus, mas olhe só, um país como o Congo, onde morreram 10 milhões de congoleses. Até hoje isso não é reconhecido como um crime contra a humanidade”.
Um segundo momento em que o país foi explorado se deu durante a Segunda Guerra Mundial. O povo congolês foi usado e forçado a ir para baixo da terra, trabalhar com a extração de minério de urânio. “Sem o uso de nenhuma proteção”, aponta Yves.
Essa exploração de urânio serviu para manter um projeto nos Estados Unidos. “E nesse processo de fornecimento muitos congoleses foram submetidos à radiação do urânio. O urânio é muito radioativo. Nenhum desses congoleses foram reconhecidos como vítimas do projeto Manhattan como são tratadas as vítimas japonesas. Até hoje, estes congoleses nunca receberam qualquer compensação ou reparação por tal sofrimento”.
O terceiro momento em que os congoleses foram sacrificados pelo interesse de países imperialistas se deu na indústria digital, quando surgiu, no salto do mundo analógico para o digital, a necessidade de produção de dispositivos. Para produzir baterias e outros materiais, é necessário um minério muito especial chamado Coltan, encontrado em grande quantidade na região leste do Congo.
“Essa é a razão pela qual neste processo nós já perdemos milhões de congoleses. E não que nós os tenhamos perdido por terem morrido, mas, porque, sim, na verdade foram assassinados”.
Os congoleses têm sido sacrificados ao longo da história para sustentar indústrias muito distante do Congo. Por isso o colonialismo é tão discutido nos movimentos no país. Yves alerta que tudo isso é um aviso sobre o que irá acontecer em pouco tempo. Que é a evolução do carro a gasolina para o carro elétrico. “Veículos precisarão de lítio e cobalto. O Congo concentra 60% do Cobalto existente no mundo. E isso já é um alerta. Não precisamos de mais um massacre para fornecer cobalto para a humanidade”.

Agora, em meio à pandemia do Covid-19, o Congo foi escolhido como local para a realização dos testes das vacinas.
“Seremos, novamente, sacrificados. Agora pela indústria farmacêutica que quer criar um produto sem respeitar todo um processo necessário para que isso seja encaminhado. É preciso dizer ao mundo que não somos ratos de laboratório. Não servimos como terreno para experimentos. Aqui não é um playground para projetos imperialistas, colonialistas e racistas”, alerta o ativista.

Em entrevista, o ativista congolês detalha sobre essa situação e destaca a necessidade de solidariedade e pressão internacional para que o projeto de testes seja barrado, em defesa da população que não deve servir como cobaia para o experimento.
A Sociedade Civil Congolesa na África do Sul, organização da qual Yves faz parte, lançou manifesto em que exige do presidente Felix-Antoine Tshisekedi Tshilombo que recuse a proposta para a testagem em seres humanos no Congo. A CSP-Conlutas reforça o chamado à solidariedade e apoia a reivindicação da entidade de luta.

Confira abaixo um pouco mais da entrevista com o ativista congolês Yves Sa Ngol:

CSP- Conlutas: Como a proposta de realizar testes das novas vacinas na população congolesa repercutiu na sociedade de modo geral?
Yves Sa Ngol: Essa possibilidade de realizar os testes no país viralizou nas redes sociais. A opinião geral da população no Congo é totalmente contrária aos testes. Muitas pessoas levantaram a voz e disseram ‘não aos testes’. Mas também temos de reconhecer que existe uma grande parte da população que nem tem conhecimento da pandemia ou mesmo o projeto de teste.
Por isso, queremos que o mundo saiba sobre mais este holocausto que pode acontecer novamente no Congo. Um holocausto silencioso, que deve custar muitas vidas, talvez mais do que em qualquer outro lugar do mundo.
Estamos todos dizendo um basta! Nos mobilizamos para interromper esse projeto e pedimos o apoio de todas organizações que defendem que a vida é mais importante do que o lucro para o capital. Proteger a vida é mais importante do que promover investimento e crescimento econômico para os interesses de poucos. Temos que nos levantar e barrar esse tipo de projeto.

CSP: Qual é a atual situação da estrutura de atendimento médico no Congo e qual o nível de contágio no país?
YSN
: O Covid-19 é um desafio muito importante para a República Democrática do Congo, sabendo que todo nosso corpo médico acabou de sair de um longo período de luta contra o ebola, sobretudo no lado leste do país. Então, sem qualquer pausa para descanso, eles agora estão enfrentando um novo desafio que é enfrentamento ao Covid-19.
Eu aproveito o momento para agradecer ao professor Jean-Jacques Muyembe, o homem que esteve na linha de frente da luta contra o ebola, desde o primeiro surto, em 1976, até hoje, e que está novamente no combate, como chefe comandante da equipe contra o Covid-19.
Essa pandemia está realmente ameaçando o mundo inteiro e acho que o Congo sentirá mais brutalmente, e talvez mais do que muitos outros países, por muitas razões, e a mais importante é exatamente esta que citei: o fato de termos acabado de sair do ebola para enfrentar outra pandemia que está se espalhando tão rapidamente entre a população.
Hoje (7/4) são cerca de 200 pessoas no país afetadas pela pandemia. Entre eles, 18 faleceram e aqui expressamos nossas mais profundas condolências à família e que suas almas descansem em paz. Nove pessoas se recuperaram e 152 ainda estão em tratamento.
[Até sexta-feira (10/4), o Congo registrava 20 mortes por Covid-19]
Isso é um alerta e uma indicação muito importante sobre como essa pandemia pode se tornar ainda mais perigosa em poucos dias. Principalmente nas regiões populosas, como as mais afetadas que vivem em Kinshasa [capital do Congo], local de grande aglomeração onde quase 14000000 de habitantes vivem em condições favoráveis para a circulação do vírus. Estou realmente preocupado com o andamento da pandemia, vamos esperar e ver, mas o prognóstico não é nada positivo.

CSP: Comente, Yves, um pouco sobre a urgência que você cita nesta campanha mais internacionalista que denuncie o racismo presente nestas iniciativas de países e organizações imperialistas e colonialistas.
YSN: Hoje, nosso mundo está enfrentando um inimigo que governa as regras e a lógica capitalistas. Enfrenta as imposições dos países imperialistas e racistas. O que está acontecendo hoje com as vacinas segue apenas uma lógica muito simples. Lembre-se de que, nos últimos anos, tantas empresas mudaram plantas de suas fábricas e hoje se localizam do norte ao sul da Ásia. Por quê? Porque lá diminuem custos de produção para aumentar drasticamente os lucros. E o fazem pagando salários baixos e explorando trabalhadores. Fazem isso sem respeitar as regras e regulamentos ambientai.
Isso que ocorre hoje com as vacinas segue a mesma lógica. Todos sabemos que testar essa nova vacina tem um custo. Um custo humano, mas também o custo financeiro. E esses países querem testar vacinas em países muito pobres por algumas razões. Porque sabem que podem pular todo um processo regido por normas, e farão isso tendo como base um baixo custo, e que poderão nos usar como humanos sem qualquer garantia de segurança para isso.
Não vamos esquecer também que a vacina é um produto. Uma mercadoria. E que isso significa que sua produção é um negócio, antes de tudo. O que ocorre é um projeto colonialista. É exatamente o que aconteceu em Berlim em 1885, quando algumas pessoas, reunidas e sentadas em uma sala, decidiram sobre como cortar a África em pedaços. As consequências disso nós africanos pagamos até hoje.
O que ocorre hoje segue a mesma lógica. Pessoas sentadas em algum lugar decidem que o Congo ou qualquer outro país africano servirá como base de testes para a vacina. E ainda há comunistas que ficam surpresos por termos sido escolhidos para esse processo. Por que? Este é mais um projeto imperialista e racista e não podemos aceitar isso.

CSP: Como os movimentos locais têm se organizado contra isso?
YSN: Até agora, movimentos sociais, bem como algumas organizações religiosas e sociedades civis no Congo levantaram a voz para dizer não a esse projeto. A Sociedade Civil Congolesa da África do Sul lançou, há dois dias, uma declaração em que dizemos aberta e claramente não a esse projeto, e por algumas razões. Em primeiro lugar, todos sabemos que é muito importante para o mundo que as pesquisas sigam avançando até que se encontre uma vacina ou qualquer medicamento que possa ajudar o mundo a sair dessa pandemia. Apoiamos as iniciativas de pesquisa científica e médica nessa direção.
Mas também sabemos que, no que diz respeito à vacina ou a qualquer novo medicamento, durante o protocolo de teste existe um primeiro nível que deve ser aplicado em animais, e se depois de um tempo razoável não houver qualquer ameaça para os animais, o segundo nível seria com os seres humanos. Vale destacar que, ainda assim, nenhum ser humano deve ser forçado a passar por esse processo. Isso deveria ser realizado via um processo individual e voluntário, em que as pessoas aceitam, depois de conhecerem todos os riscos, fazer parte do teste e que serão garantidas. Esse processo é respeitado para que não haja surpresas negativas, e então a vacina ou o medicamento poderá ser liberado abertamente para uso público. Portanto, é evidente que, para esta nova vacina, considerando o tempo de produção e o tempo de testes em seres humanos, as normas não estão sendo respeitadas e que qualquer surpresa pode acontecer. Então, nós, enquanto organização responsável, não podemos aceitar isso.
A segunda razão pela qual somos contra os testes no Congo é que o fato de que nós fomos escolhidos. Por quem não conhecemos, afinal sabemos disso pela imprensa e não consideramos isso como algo normal, exatamente por contrariar qualquer protocolo de segurança e até mesmo nossos direitos básicos para a aceitação deste processo.
Como pode um país ser escolhido por uma indústria farmacêutica, ou qualquer outra organização do setor, para servir como campo de teste de um produto? Não, isso não pode ser permitido. Nós condenamos firmemente esse plano. Sabemos que ele foi amarrado secretamente e também por isso que exigimos que o presidente Felix-Antoine Tshisekedi Tshilombo diga não ao projeto abertamente e publicamente, a fim de interromper esse processo criminoso.

CSP: O Brasil é um país formado por uma larga população com descendência africana. Temos muita proximidade com as lutas de vocês por reparações, por exemplo. Como acha que podemos ajudar nessa luta contra os testes no Congo?
YSN: O Brasil é um país que é a síntese da África. É símbolo da injustiça que ocorre desde tempos passados, quando os africanos foram vendidos como escravos. Mas também o Brasil é o símbolo da resiliência africana. Onde as pessoas olham para trás e tentam se levantar contra o que ocorreu no passado. Portanto, juntar-se à nossa voz, para criar mais conscientização sobre esse projeto de teste no Congo, na África, é muito importante, e é por isso que queremos agradecer a CSP-Conlutas por todo seu esforço em fazer nossa voz ser ouvida no Brasil e onde mais for possível.
Nós realmente precisamos de uma forte coalizão de forças para quebrar esse sistema imperialista. E isso só será possível se fizermos um esforço conjunto com vocês. É por isso que sempre estaremos abertos a qualquer tipo de colaboração entre nós enquanto organização com vocês brasileiros. E gostaria de reforçar que, em particular, agradecemos muito a vocês, porque é a segunda vez que vocês tentam fazer nossa voz ser ouvida fora do Congo e da África, e nós realmente apreciamos esse esforço.

Via: CSP-Conlutas.